Uma escala de fé – Paula Ramos

 

Se nos perguntarem “O que significam as palavras vermelho, azul, preto, branco?”, podemos, bem entendido, mostrar imediatamente coisas que têm essas cores. Mas a nossa capacidade de explicar o significado dessas palavras não vai além disso.

Ludwig Wittgenstein, in Anotações sobre as Cores

 

Dedicado a investigar, entre tantas questões, a relação entre linguagem e realidade, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) acreditava que, uma vez que o signo representava o objeto, a forma lógica da linguagem seria a forma mesma do mundo. Isso nos permitiria pensar, partindo do preâmbulo deste texto, que o nome da cor é também cor. E, de fato, ele é parte fundamental da percepção cromática que temos das “coisas do mundo”, ativando e solicitando nosso saber, nossa memória e imaginação. É na discussão de aspectos congêneres que Letícia Lampert vem pautando sua poética, adotando a fotografia como meio e a cor como assunto.

No presente trabalho, Escala de Cor das Coisas, Letícia dialoga com um dos mais populares sistemas de padronização de cores, o Pantone Color Guide. Empregado internacionalmente em gráficas, editoras e agências publicitárias, ele funciona como um mostruário, indicando, de forma muito próxima e crível, como as cores se manifestam ao serem impressas.

No formato e na aparente função, também o catálogo de Letícia parece permitir a aferição cromática. Contudo, se o observarmos atentamente, perceberemos que suas cores, como medidas, são intangíveis, uma vez que operam no território da linguagem, da subjetividade e da fantasia. Como explicar o azul calcinha, o vermelho tomate, a cor de carne, a cor de pele? Aliás, estendendo a problematicidade: cor de pele de que raça? E o que dizer da cor de burro quando foge? Como seria possível defini-la, ou mesmo imaginá-la? Apresentadas como fotografias de detalhes e texturas das coisas as quais seus nomes remetem, essas “cores” escancaram, uma vez mais, sua natureza incomensurável. Ora, no verde musgo cabem dezenas de tonalidades de verde, assim como no verde limão e no verde folha… Oriundas de associações e metáforas usadas no dia-a-dia, essas denominações reforçam a carga experiencial por trás do ato de nomear e de se relacionar com o mundo. E se, isoladas do contexto, parecem absurdas, o que não dizer de suas versões para o inglês, a língua franca adotada em manuais semelhantes? Nessa incongruência, o léxico das cores, dos mais líricos que existem, mostra-se absolutamente rebelde à tradução.

O fato é que a provocativa e lúdica Escala de Cor das Coisas perturba a familiaridade do pensamento, e isso talvez se deva menos ao fato de conhecermos e de usarmos os nomes substantivados e sistematizados pela artista, e mais por nos darmos conta, se não de sua impossibilidade, pelo menos de sua imprecisão.

Esta sutil complexidade também desponta no trabalho Escala de Cor do Tempo. Nele, a artista novamente buscou medir o imponderável por meio da cor; no caso específico, o tempo. Ambos os conceitos, cor e tempo, são por natureza abstrusos, e a proposta de mensurar um a partir do outro beira o delírio. Tomando um único enquadramento, a janela do banheiro de seu apartamento, Letícia fotografou as impressões de luz, tendo entre ela e a paisagem exterior somente o vidro canelado da abertura, naturalmente marcado pela gradação encontrada nas escalas. Limitando-se a esse recorte, produziu, ao longo de um ano, dezenas de imagens, que deram corpo a duas escalas cromáticas: uma para dias de sol e outra para dias de chuva, mas ambas sem qualquer aplicação ou funcionalidade.

Quanto a isso, vale lembrar que a artista, cuja formação inicial é em Design, trabalha rotineiramente com sistemas como o já citado Pantone, ou o Kodak Color Chart. São eles que aferem a “verdade” das cores, assegurando as opções e percepções do profissional da área. Portanto, quando se lança a criar não apenas novas e oníricas medidas, a exemplo do tempo-cor e da coisa-cor, como também etéreas tabelas, Letícia Lampert nos convida tanto a pensar acerca da inconsistência de nossos sistemas de classificação e ordenação do mundo, como estende ao cotidiano o lirismo e a poesia próprios do universo da arte.

Paula Ramos
Jornalista e Crítica de Arte
Porto Alegre, outubro de 2009

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